Augusto Matraga, personagem célebre de uns dos contos de Sagarana, vivencia uma trajetória de ascese: enfrenta desafios, cai na escuridão, mas no final emerge sob a luz da verdade que o renova. Em 2019, após a turbulência causada pela guerra comercial entre EUA e China, os países emergentes têm os holofotes voltados para si. Mais do que isso, o mundo espera que eles assumam o protagonismo de suas asceses.
Qué pasó? Questionam os argentinos, após encerrar o ano de 2018 com uma inflação de 47,6%, segunda maior da América Latina, taxa de juros em 58% e uma indigesta retração do PIB de -2,6%. Sabe-se que países emergentes têm maior instabilidade macroeconômica do que os desenvolvidos. Portanto, no atual cenário de liquidez reduzida devido à guerra comercial e à normalização monetária dos países desenvolvidos, é essencial ter níveis adequados de reservas internacionais, baixa inflação e existência de conforto fiscal e monetário para adotar políticas anticíclicas, caso seja necessário. Isso é tudo que a Argentina não tem. Não à toa o governo Macri tem sido muito criticado por sua tentativa de ajuste gradual em um país sem qualquer colchão para resistir aos choques externos.
Mas, como sabemos, a bola e o mercado punem. O peso argentino despencou, perdeu metade do seu valor, e a Argentina teve que pedir ajuda ao FMI sob a condição de um déficit fiscal zerado em 2019 para receber um empréstimo de 57 bilhões de dólares. Isso tudo deteriorou a imagem de Macri frente a população argentina, que vai às urnas neste ano e terá como candidatos a ex-presidente Cristina Kirchner e o próprio Macri. A depreciação do câmbio e uma provável melhor colheita tendem a fortalecer as exportações argentinas neste ano. Entretanto, espera-se uma queda no PIB e o crescimento do desemprego até 2020, em consequência da redução da demanda doméstica derivada das necessárias reformas fiscal e monetária.
Há um momento do conto no qual Augusto Matraga diz que “vai para o céu nem que seja a porrete”, após quase morrer. Nada mais análogo à situação econômica da Argentina, que após anos de populismo com o Kirchnerismo elegeu um presidente que será obrigado a entregar um equilíbrio econômico nem que seja a porrete.
“Parece limão, é de groselha, mas tem gosto de tamarindo”. A frase do personagem Chaves sintetiza muito bem a situação de Brasil e México após as eleições de 2018, que elegeram Jair Messias Bolsonaro e José Manuel Lopez Obrador (AMLO), respectivamente. O novo presidente mexicano é mais complexo do que pode parecer à primeira vista. No mesmo programa econômico que apregoa devolver ao Estado um papel importante na promoção do desenvolvimento econômico, aumentando os investimentos públicos, o salário mínimo e prometendo um combate à desigualdade, AMLO propôs um enxugamento da máquina pública, principalmente cortando gastos com pessoal, grande redução da dívida pública e, sobretudo, intenso combate à corrupção.
Esses antagonismos também estão presentes no governo de Bolsonaro, que prometeu durante a campanha uma agenda liberal com inúmeras reformas, privatizações e abertura comercial, algo que contrasta com o passado do próprio presidente e seus aliados militares. De fato, fica a impressão de que os países invertem seus papéis, pois nada mais brasileiro que o “toma-lá-dá-cá” que AMLO propôs. E poderia ter algo mais com a cara do PRI (Partido Revolucionário Institucional) do que um conservadorismo trajado de políticas econômicas liberais, agora patente no Brasil?
Ambiguidades à parte, o mercado, por enquanto, escolheu dar o voto de confiança ao Brasil. Porém, não se deve entender este otimismo como constatação de que a economia brasileira está em melhores condições, e sim que tem potencial para melhorar, em algum tempo, se as principais promessas do novo governo se concretizarem. AMLO receberá o México com uma inflação de 4,56%, taxa de desemprego de 3,19% e uma dívida pública de 46% do PIB. Em contrapartida, Bolsonaro receberá o país com esses mesmos indicadores em 3,75%, 11,6% e 76,7%, respectivamente. Ademais, o México, desde de 2010, tem crescimento constante do PIB com inflação controlada e baixo nível de desemprego, ao passo que e o Brasil, bom, é melhor nem comentar. Contudo, a grande diferença entre os dois países se encontra no sistema previdenciário. Ambos têm porcentagens próximas da população com mais de 65 anos. Entretanto, o Brasil despende 12% do PIB e o México apenas 2% do PIB com gastos previdenciários.
Fonte: Tesouro Nacional, OECD Pensions at a Glance 2017.
A ascese brasileira começará um passo atrás, pois a reforma da previdência será o marco zero para o início de uma recuperação econômica robusta. Os passos seguintes deverão mirar o crescimento da produtividade com, entre outras medidas, uma abertura comercial, permitindo às empresas brasileiras incorporarem novas tecnologias e se adequarem ao padrão internacional e, principalmente, uma melhoria na infraestrutura brasileira, que sempre dependeu demasiadamente do setor público, e sofreu com distorções ligadas à má condução do governo nos últimos anos. Sem embargo, além do aumento do investimento privado, será necessário um avanço do investimento público, que está em níveis inferiores aos visto em pares emergentes, consequência do aperto fiscal dos anos recentes.
Por outro lado, o caminho mexicano é mais curto, já que o país tem certo controle fiscal. A luta também será por maior produtividade, problema recorrente em toda a América Latina. Todavia, atualmente o principal problema mexicano decorre das incertezas em relação ao novo tratado comercial com EUA e Canadá, e os impactos da guerra comercial entre EUA e China, que afetam duramente as relações comerciais mexicanas. Os investidores receosos de investirem no México se perguntam qual AMLO vai gerir estes problemas. Uma “carta ao povo mexicano” poderia cair bem.
Brasil, Argentina e México, as maiores economias da América Latina, sintetizam os enormes desafios compartilhados por este continente que está ficando para trás devido ao seu isolamento comercial e baixa produtividade. Não por acaso, que as eleições de 2018 confirmaram um processo de modificação do poder na América Latina. A população está insatisfeita, busca encontrar novos salvadores, e não tem exigências ideológicas claras, bastando ser algo contrário ao professado pelos que estiveram no poder durante por tanto tempo anteriormente. Não há dúvidas que estes países enfrentarão enormes desafios, cada qual com suas particularidades. O que resta questionar é: terão essas nações sua hora e vez na pouco volumosa história do catching up?
Uma resposta para “Precisamos falar sobre os emergentes”
Muito legal a mescla de elementos literários numa assunto que a maioria das pessoas ignora ou por ser difícil, ou por não gostar mesmo, apesar de nos afetar diariamente, já que somos cidadãos e vivemos essas incertezas todos os dias. Quem sabe sua geração possa despertar essa leveza e ao mesmo tempo profundidade agradável na discussão de um assunto tão importante e tome as rédeas de nosso país.