Quantitative Easing – Uma Introdução


Do final de 2008 em diante, muito se tem falado a respeito do Quantitative Easing (QE), uma pouco convencional medida na execução da política monetária. Recentemente, muito tem sido dito sobre seu potencial encerramento – a tão anunciada “normalização da política monetária”. Para uma compreensão adequada do conceito do QE, é necessário antes elucidar funcionamento usual da política monetária.

Uma excepcional explicação deste processo pode ser encontrada em Ihrig et al. (2015). Logo no início do documento (p. 2) os autores escrevem:

“The combination of Federal Reserve created demand for reserve balances and banks’ desire to limit such balances drove an active interbank market—known as the federal funds market—for exchanging these funds, one in which banks borrowed from and lent funds to each other on a daily basis at an interest rate known as the federal funds rate. With reserve balances generally scarce, the Federal Reserve could meaningfully affect the market-determined level of the federal funds rate and keep it close to the FOMC’s target level by announcing the target level of the federal funds rate and making small changes in the supply of aggregate reserves, as needed.”

As “reservas” às quais os autores se referem são o que o é comumente chamado de “Depósito Compulsório” no Brasil, ou seja, o percentual dos depósitos a vista, depósitos a prazo e recursos em cadernetas de poupança que os bancos devem manter no Banco Central, com vistas a mitigar parte do risco de liquidez inerente ao sistema de Reserva Fracionária [1]. Os bancos podem depositar mais do que o exigido pelo Banco Central, constituindo o que se chama de “Excess Reserves” (no Brasil, “Depósito Voluntário”).

Os bancos devem manter seus depósitos de reservas atualizados no Banco Central diariamente, o que implica dizer que devem depositar, todos os dias, o percentual definido nas diretrizes de depósitos compulsórios aplicados às suas operações diárias. Contudo, é comum que, ao final do dia, alguns bancos se encontrem sem recursos suficientes para realizar o depósito de suas reservas junto à autoridade monetária. Outros bancos, por sua vez, têm em caixa mais do que precisam para honrar suas obrigações com o Banco Central. Como as reservas depositadas compulsoriamente não são remuneradas, os bancos têm um incentivo a depositar apenas o mínimo necessário, de modo que alguns permanecem com dinheiro em caixa ao fim do dia. Existem, então, bancos que precisam de reservas e bancos que têm reservas sobrando. Surge daí um mercado, o chamado “Mercado Interbancário”, onde os bancos emprestam uns aos outros suas sobras de reservas pelo prazo necessário para que os deficitários tenham as reservas requeridas pelo Banco Central, ou seja, por uma noite – o que faz com que esse mercado seja muitas vezes referido como “Overnight”. A taxa que os bancos cobram de seus pares nesta operação é a famosa Federal Funds Rate, nos EUA, ou Taxa Selic [2], no Brasil.

E o que tudo isso tem a ver com a condução da política monetária? Tudo. A fim de atingir suas metas, os bancos centrais não tentam controlar diretamente a quantidade de moeda na economia inserindo ou retirando dólares ou reais de circulação. Ao invés disso, controlam a liquidez do sistema através de incentivos ou desincentivos ao empréstimo e tomada de fundos junto às instituições financeiras. E a FED Funds Rate/Selic (também chamada de “taxa básica de juros”) é o principal instrumento para atingir este fim.

Uma vez que os bancos iniciam sua pernoite no mercado Interbancário, o Banco Central faz algumas aparições, e realiza operações de compra e venda de títulos públicos que guiam a taxa de juros à qual os bancos negociam para uma meta estabelecida previamente pelo Comitê de Política Monetária do país em questão (FOMC nos EUA, Copom no Brasil). As duas vias da negociação da autoridade monetária com os bancos são:

  • Se o Banco Central quer aumentar a taxa básica de juros, vende títulos aos bancos a uma taxa que se aproxima mais de sua meta. Deste modo, os bancos com excesso de caixa têm incentivos a emprestar ao BC, a não ser que os outros bancos ofereçam remuneração igual ou maior por estes recursos, o que empurra a taxa de mercado para cima;
  • Se o Banco Central quer diminuir a taxa básica de juros, compra títulos dos bancos requisitando uma taxa que se aproxima mais de sua meta. Assim, os bancos deficitários têm incentivos a tomarem recursos junto ao Banco Central a não ser que os outros bancos ofereçam uma taxa igual ou menor, o que empurra a taxa de mercado para baixo.

Essas compras e vendas de títulos do BC no mercado Interbancário são comumente chamadas de Operações de Mercado Aberto (OMO’s, na sigla em inglês). Em situações de crise, é comum esperar que o Banco Central diminua a taxa de juros, incentivando os bancos a conceder empréstimos e a uma taxa menor, o que contribui para reanimar a economia.

Neste ponto, pode-se pensar que o Federal Reserve poderia simplesmente ter comprado títulos no mercado interbancário para empurrar os juros para baixo na crise de 2008. E, inicialmente, foi isso mesmo que o FED fez. Em meados de 2008, a FED Funds Rate havia sido reduzida em mais de 325 pontos base (3,25%), figurando no patamar de 0 a ¼ em dezembro do mesmo ano (BERNANKE, 2009).

A partir daí, contudo, a situação fica crítica. O FED passou a estar basicamente incapacitado de influenciar o mercado monetário através do instrumento tradicional das Operações de Mercado Aberto, pois chegara-se a um ponto em que a taxa de juros era tão baixa  que (1) não era vantajoso aos potenciais poupadores se desfazer de suas reservas por uma remuneração tão baixa e (2) a única direção imaginada para a taxa de juros básica da economia era um aumento, de modo que seria irracional adquirir títulos ou emprestar recursos a uma taxa mais baixa na iminência de um aumento dos juros. Essa situação é comumente descrita na literatura como “Armadilha da Liquidez” (ver Keynes, 1996, p. 206 [4]).

Em busca de alternativas para estimular a economia, o FED recorreu a algo que o Banco Central do Japão havia posto em prática cerca de uma década antes: um movimento de compra massiva de ativos. Em linhas gerais isso é o equivalente a uma forma muito mais agressiva de Operação de Mercado Aberto, funcionando da seguinte maneira:

(1) O Banco Central realiza créditos em contas de reservas que os bancos mantêm junto a autoridade monetária, e em troca retira das instituições financeiras ativos como os títulos lastreados em hipotecas (bastante ilíquidos em meio à crise), títulos do Tesouro, entre outros ativos;

(2) Com a injeção de dinheiro proveniente dessas compras de ativo, os bancos agora se veem com mais reservas do que necessitam (o exigido pelo FED é cerca de 10%), e buscam emprestá-las, empurrando a taxa de juros no mercado interbancário para baixo;

(3) Uma vez que a demanda do Banco Central pelos títulos é massiva, o preço desses ativos sobe, o que derruba as taxas de juros pagas pelos detentores dessas dívidas. Isso inclui, além do próprio Tesouro (que precisa vender títulos para a execução de política fiscal), corporações emissoras de títulos (e.g., debêntures), consumidores de produtos com pagamento a prazo e, em especial, devedores no mercado hipotecário;

(4) O financiamento do consumo, a expansão das companhias, e a manutenção da dívida do governo são agora mais baratos, o que (espera-se) tende a dar fôlego à economia.

Este movimento do Federal Reserve ficou conhecido como Quantitative Easing (afrouxamento quantitativo, na tradução livre), uma espécie de política monetária expansionista bastante agressiva e não convencional, em cuja aplicação o FED seria seguido por outros bancos centrais ao redor do mundo (e.g., o BCE [5]) alguns anos depois.

Em decorrência do QE, o balanço do Federal Reserve, que em meados de setembro de 2008 já havia ultrapassado a casa dos 800 bilhões de dólares (onde permanecera por longo período anteriormente) sofreu um aumento estrondoso, com o ativo entupido de títulos varridos dos balanços dos bancos, em especial as “Mortgage-Backed Securties” (títulos lastreados em hipotecas), e o passivo preenchido por reservas bancárias.

Quais foram os resultados do Quantitative Easing?

Como destaca Amadeo (2018), pode-se dizer que o Quantitative Easing, ao menos em sua versão norte-americana, cumpriu parte de seus objetivos. Os bancos saíram do aperto ao verem seus balanços livres das montanhas de hipotecas ‘subprime’, permitindo que a atividade bancária normal se reestabelecesse no país e a confiança do público nas instituições financeiras tradicionais retornasse, trazendo de volta também o mercado imobiliário, o que era um dos objetivos centrais da intervenção do Federal Reserve.

Contudo, nem tudo são flores nessa história. Boa parte dos recursos concedidos aos bancos através das compras de ativos não cumpriram o objetivo de irrigar a economia com crédito. Ao contrário, permaneceram em posse dos bancos, sendo utilizados, por exemplo, para recompra de ações dessas instituições financeiras, inflando seus lucros e valor de mercado, e aumentando a concentração no setor (AMADEO, 2018).

Não é surpreendente que, ao contrário do alardeado pela teoria econômica tradicional, uma expansão monetária desta magnitude não tenha resultado em pressões inflacionárias de grande porte. O fato é que grande parcela desse dinheiro nunca saiu dos balanços dos bancos, nunca foi para a mão das empresas e das pessoas, daí às compras de bens e serviços, e, portanto, não pôde ser gerado um processo de depreciação da moeda pelo excesso de meio circulante (inflação).

Ademais, ao diminuir os yields dos diversos títulos na economia (pela relação + demanda → + preços → – yield), o Quantitative Easing incentiva a alocação de recursos em ativos de mais alto risco, como ações, por exemplo. Diante disso, muitos apontam que o programa incentiva a criação de bolhas em diversos mercados, que podem estourar quando os bancos centrais decidiram que é a hora de drenar dinheiro da economia e retornar ao status quo da política monetária, isto é, normalizar a política monetária retirando os estímulos provenientes do QE, o que levaria as taxas de juros a aumentarem, a economia a arrefecer, e os agentes a moverem seu capital de mercados de mais alto risco para títulos de dívida que passarão a entregar maiores retornos (RALLO, 2015).

Como a remoção massiva de capital de alguns mercados poderia resultar numa crise financeira – justamente de onde os bancos centrais tentaram escapar com o QE –, há um esforço do Federal Reserve (e de outros Bancos Centrais) para ‘telegrafar’ eventuais movimentos de aperto monetário, isto é, para transmitir com grande antecedência ao mercado sua intenção de encerrar seus programas de afrouxamento quantitativo e aumentar o nível da taxa de juros básica da economia, de modo que os agentes realizem a realocação de seus recursos gradualmente, o que evitaria movimentos bruscos que podem acarretar uma nova recessão.

Pode-se dizer, por fim, que o Quantitative Easing é uma medida extremamente controversa, e a discussão a seu respeito deve ser feita continuamente conforme os efeitos – negativos ou positivos – continuarem a se manifestar ao longo do tempo. O tema foi abordado por diversos autores, e não se pretendeu aqui mais do que uma breve introdução, como revela o título. Recomenda-se ao leitor interessado uma pesquisa mais aprofundada nesta temática, para a qual julga-se por bem avisar que o tema pode se tornar espinhoso e bastante técnico, mas – na opinião deste autor –, com grande retorno em termos de conhecimento e satisfação.

NOTAS

[1] Ver: investopedia.com/terms/f/fractionalreservebanking.asp

[2] Quando, na operação entre os bancos, títulos públicos são dados como garantia, a taxa vigente é a Selic. Quando os títulos são privados, vigora a taxa CDI (Certificado de Depósito Interbancário). As duas taxas têm definições análogas, e geralmente estão em patamares muito próximos.

[3] https://analisemacro.com.br/economia/economia-internacional-economia/para-quem-esta-esperando-pelos-juros-norte-americanos/

[4] É apontamento comum entre diversos autores o fato de que Keynes, ou tampouco Hicks, seu “sucessor”, se aprofundaram no conceito de Armadilha da Liquidez. De fato, há apenas um parágrafo na principal obra de Keynes onde este se aproxima de especificar o conceito, embora não cunhe o termo. Para os fins deste texto, isto não é suma importância. Para o leitor interessado nesta temática, pode-se recomendar Mass (1978) ou Krugman (2000), por exemplo. A literatura acerca do tema é vasta, e muitos outros artigos de qualidade análoga podem ser encontrados sem esforço.

[5] Para uma perspectiva mais centrada no QE europeu, ver CASTRO (2018) e suas referências.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMADEO, Kimberlay. Quantitative Easing Explained: How Central Banks Created Massive Amount of Money. The Balance. 2018. Disponível em: <https://www.thebalance.com/what-is-quantitative-easing-definition-and-explanation-3305881>. Acesso em 17 de janeiro de 2019.

BERNANKE, Ben S. Monetary Policy Report to the Congress. DIANE Publishing, 2009.

CASTRO, M. F. Quantitative easing e os desafios da normalização. Público. 2018. Disponível em: <https://www.publico.pt/2018/12/24/economia/opiniao/quantitative-easing-desafios-normalizacao-1855621>. Acesso em 17 de janeiro de 2019.

IHRIG, Jane E.; MEADE, Ellen E.; WEINBACH, Gretchen C. Monetary Policy 101: A Primer on the Fed’s Changing Approach to Policy Implementation. 2015.

KEYNES, John M. A teoria geral do emprego, do juro e da moeda. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996.

KRUGMAN, Paul. Thinking about the liquidity trap. Journal of the Japanese and International Economies, v. 14, n. 4, p. 221-237, 2000.

MASS, Nathaniel Jordan. A microeconomic theory of the liquidity trap. 1978.

RALLO, Juan R. O que é e quais efeitos tem um programa de “afrouxamento quantitativo”. Mises Brasil. 2015. Disponível em: <https://mises.org.br/Article.aspx?id=2044>. Acesso em 20 de janeiro de 2019.


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