Contexto histórico – Um olhar sobre os dados
Para entendermos os motivos do enorme hiato atual entre a arrecadação e despesa da previdência é necessário olharmos não só para a foto de 2018, mas sim para o filme da Seguridade Social desde 2001 até os dias atuais.
O retrato de 2018 nos mostrou um déficit de aproximadamente R$ 265,2 bilhões, um enorme rombo nas contas públicas que pouco a pouco canibaliza as demais despesas do Governo.
No gráfico abaixo, que compara a trajetória do resultado primário do Governo Central (Receitas Liquidas – Despesas Totais, excluído despesas com juros) e o resultado do Regime Geral da Previdência Social (Arrecadação Líquida para o RGPS – Despesas com Benefícios Previdenciários) – o RGPS abrange todos os trabalhares da iniciativa privada (Rural e Urbano) – demonstra uma trajetória deficitária do regime previdenciário em todo o período analisado. No entanto, apesar de preocupante, o déficit previdenciário não recebia a devia atenção, até que se tornou crítico. Para ilustrá-los, imaginemos o Brasil como uma grande cidade sobre um grande lago, enquanto o nível da água permanecesse alto, boias de sustentação ajudavam a manter a cidade inteira flutuando, além do mais a cidade possui estruturas para evitar que em tempos de seca a cidade ruísse. A água era turva e pouco se via da estrutura que a sustentava da superfície, alguns poucos mergulhadores que se aventuravam por entre as águas, ao retornar alertavam sobre os perigos de fragilidade para tempos de seca e da necessidade de ajustes, mas a cidade vivia um tempo de festa, e poucos acreditavam que uma seca estaria por vir.
E de fato o Brasil estava em festa. Crescemos em média de 3,7% a.a entre 2001 e 2010. Elaboramos um amplo pacote de investimento em infraestrutura, os preços das commodities haviam disparado assim como nossas exportações. Nossas reservas internacionais alcançaram níveis históricos. O consumo das famílias ia de vento em popa.
No entanto, no período de 2010 a 2014 nosso crescimento médio cai para 2,4% a.a. No terceiro trimestre de 2014 o Brasil entra oficialmente em recessão, o primeiro de 11 trimestres de queda do produto até sua tímida retomada em março de 2017 quando registra crescimento de 0,1% no trimestre.
No gráfico abaixo, vemos que neste período as despesas do Governo ultrapassaram a arrecadação e a incidência em déficits prevalecerá até os dias atuais. A economia formal (empregos com carteira assinada), peça importante para a sustentação do sistema previdenciário, acompanhou o mergulho do produto, o que corroborou para a deterioração do cenário fiscal.
O nível da água estava abaixando e o que antes era turvo agora se tornava claro, o Brasil mostrou suas frágeis estruturas ao mundo. A cidade ameaça ruir. Outro fator que contribuiu para o “bom” comportamento do déficit previdenciário, mas que agora se torna mais um peso contrário na balança do equilíbrio fiscal é a composição da nossa razão de dependência ou o bônus demográfico. O gráfico abaixo expressa a razão entre a quantidade de habitantes com idade entre 0 – 14 anos e 65 ou mais (não contribuintes previdenciários potenciais) e o grupo entre 14 a 64 anos (que podem ser encarados como potenciais a compor a população economicamente ativa e consequentemente contribuintes à previdência). O Brasil gozou de um bônus demográfico até 2017 (enquanto a razão cair de um período para o outro, implica que mais jovens ou potenciais à força de trabalho entram na economia). No entanto a partir de 2019 este fator que contribuía de forma positiva passara a pesar negativamente e de forma crescente no tempo.
Por fim, a tabela abaixo, que compara o crescimento das despesas por categoria do gasto público nos mostra que a previdência social foi a agremiação que mais cresceu em termos percentuais do PIB. Saindo do patamar de 7,8% do PIB em 2008 para 9,9% em 2017. Resultando em um crescimento de 2.2 p.p em 10 anos. Mais que o dobro do crescimento do gasto em Educação no período (0,8 p.p) e 22 vezes mais que Saúde (0,1 p.p). No período, a despesa total do Governo Central aumentou de 15,5% para 19,1% do PIB. Resultando em um aumento de 3.6 p.p dos quais 61% foi destinado à Previdência. Desta forma, a despeito do problema fiscal latente, a previdência pública brasileira sofrerá no futuro uma expansão natural, devido, conforme vimos acima, ao fim do bônus demográfico intensificando assim o déficit existente hoje.
Da ótica simples do gasto público, a expansão desenfreada da previdência canibaliza outros gastos importantes ao desenvolvimento econômico do país, sendo assim um problema estrutural importante a ser solucionado.
Não obstante, o problema vem se arrastando desde antes do Impeachment da Presidente Dilma Rousseff, com uma solução inviabilizada pelo congresso no governo temporário de Michel Temer, e fica agora a ser combatido pelo governo de Jair Bolsonaro.
PEC 006/2019 – A nova Previdência
No dia 20 de fevereiro, o Presidente da República, Jair Bolsonaro, foi ao Congresso Nacional e entregou pessoalmente ao presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), a proposta de emenda constitucional da reforma da Previdência (PEC 006/2019).
A reforma desenvolvida pela equipe do Ministro da Economia, Paulo Guedes, tem um potencial de economia, segundo o Ministério, de R$ 1,16 trilhão nos próximos 10 anos. No entanto, antes de entrarmos na análise da proposta enviada ao Congresso, é importante enfatizarmos que os esforços em reduzir o déficit previdenciário contemplam medidas adjacentes ao texto, que são: (i) combate às fraudes nos benefícios previdenciários (MP 871); (ii) endurecimento nas cobranças de dívidas previdenciárias superiores à R$ 15 milhões; (iii) segregação do orçamento da Seguridade Social, que engloba Saúde, Assistência Social e Previdência Social, dando fim à Desvinculação de Receitas da União (DRU) de contribuições que financiam estas áreas e; (iv) inclusão dos militares através de uma lei complementar;
Pode-se também, em alguma parcela, considerar estas medidas como estratégias do Governo para aprovação do texto, tendo em vista que elas confrontam as principais críticas feitas durante a tramitação da PEC 287/2016 do Governo Temer.
Adentrando agora à proposta do então Governo de Jair Bolsonaro, nos parece razoável admitir que o texto enviado ao Congresso não será aprovado integralmente. Tomando como parâmetro a reforma do Governo Temer, já tramitada e não aprovada na Câmara, alguns pontos sofreram bastante resistência dos deputados, e, dada esta experiência, elencamos abaixo os tópicos que, em nossa opinião, também terão a mesma dificuldade em avançar nas discussões, são eles:
(i) Idade mínima das mulheres de 62 anos;
(ii) Aumento do tempo de contribuição do trabalhador rural de 15 para 20 anos e aumento da idade mínima de 55 (Mulheres) e 60 (Homens) para 60 anos tanto para homens quanto para mulheres;
(iii) Elevação da idade mínima para obtenção do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e criação de um benefício fásico;
(iv) Restrição de acesso ao abono salarial para os trabalhadores com faixa de renda de até 1 salário mínimo;
Em relação ao primeiro item, o próprio Presidente, em declaração pública, já aceitou a redução para 60 anos mínimos no caso das trabalhadoras, por exemplo.
Já a previdência rural, que foi objeto de intensa discussão na Câmara na ocasião da PEC 287, cujas propostas foram bem mais duras do que o texto atual (veja o apêndice a tabela comparativa entre os textos), sugerindo um tempo mínimo de contribuição de 25 anos e idade mínima de 65 anos tanto para homens quanto para mulheres, após grandes debates foi completamente retirada da PEC anterior proposta pelo governo Temer. Parece também razoável esperar o mesmo comportamento nesta ocasião ou alguma desidratação. Alterações na aposentadoria rural atingem beneficiários de rendas menores e geram um desgaste político maior, principalmente nos redutos eleitorais de deputados das regiões Norte e Nordeste.
O Benefício de Prestação Continuada (BPC), por sua vez, cujo impacto fiscal em 2018 foi de cerca de R$ 57 bilhões ou 0,82% do PIB e é a terceira maior despesa primária da União, equivalendo ao dobro do montante empregado no Bolsa Família também é alvo de possíveis mudanças, especificamente nos critérios e valor do benefício.
Os critérios de enquadramento ao benefício hoje são: renda mínima familiar igual ou inferior a ¼ do salário mínimo, e no caso de idosos, idade mínima de 65. Desta forma, o BPC atinge cerca de 4,7 milhões de beneficiários, dos quais 56% são portadores de deficiência e 44% são idosos acima de 65 anos.
As alterações da reforma atual sobre o benefício são de elevação da idade mínima para 70 anos e criação de um benefício de R$ 400 para idosos entre 60 e 69 anos. Segundo estimativas da Instituição Fiscal Independente do Senado Federal (IFI), o impacto da medida em 10 anos é de redução do gasto em R$ 28,7 bilhões. No entanto, nos primeiros anos de implementação do benefício fsico há um aumento dos gastos devido à expansão do volume de benefícios dada a incorporação de uma faixa de idade maior.
O impacto na economia gerada em 10 anos na mudança das regras do BPC é bastante reduzido ante outras categorias (2,5% do total de R$1,16 trilhão). No entanto, a medida fomenta a formalização e contribuição dos trabalhadores de salários mais próximos à um salário mínimo, que hoje, caso cumpram os pré-requisitos do BPC, não têm estímulos a contribuir devido à equiparação dos benefícios. Entretanto, a despeito dos argumentos ao estímulo das arrecadações e ampliação da base de beneficiários é bastante provável que este ponto também seja retirado da reforma, como o próprio presidente da Câmara, Rodrigo Maia, já sinalizou. Logo este valor de R$ 28,7 bilhões também poderia ser retirado do montante inicial estimado.
O abono salarial, por sua vez, teve uma despesa de aproximadamente R$ 17,2 bilhões em 2018 e atingiu cerca de 23 milhões de trabalhadores segundo a Relação Anual de Informações Sociais (RAIS). Na PEC 006/19 o volume de beneficiários que teriam acesso ao abono seria reduzido em aproximadamente 90% devido à alteração da faixa de renda de até dois salários mínimos da regra atual para um. Esta redução geraria uma economia anual de aproximadamente R$ 15 bilhões e de R$ 150 bilhões em 10 anos. Na comparação com o BPC, cuja nova regra altera diretamente a renda primária dos beneficiários, o abono salarial diz respeito a um incremento na renda dos trabalhadores, com isso o desgaste político tende a ser menor, principalmente por manter o benefício ao grupo de maior vulnerabilidade (até 1 SM). Mas conforme declarações públicas de deputados e líderes partidários este ponto também poderá sofrer resistência e desidratação. Outro ponto da reforma diz respeito a proposta de alteração das alíquotas tanto do RGPS quanto do RPPS, que em determinada medida serão mais progressivas. A ausência desse viés mais progressivo das alíquotas era um dos pontos criticados na reforma encaminhada pelo governo Temer. Desta forma, no novo projeto, há diminuição das alíquotas aos contribuintes de até um salário mínimo e alteração das faixas de contribuição no RGPS. Além disso, as alterações propostas são relativamente duras com os trabalhadores do Regime Próprio (RPPS), com alíquotas efetivas de mais de 16% para trabalhadores com salários acima de R$39.000 e escalonamento para outras faixas de renda.
Por fim, as regras de transição para o Regime Geral de Previdência Social (RGPS) adotadas nesta PEC difere bastante da proposta pelo Governo Temer, que foi duramente criticada por não apresentar continuidade e que durante a tramitação no Congresso foi dilatada diminuindo a potência fiscal da reforma. No texto atual há três regras de transição (que devem durar em torno de 12 anos) para se ter acesso à aposentadoria por tempo de contribuição. São elas:
- i) sistema de pontos (fórmula atual “86/96”): soma do tempo de contribuição (mínimo atual de 30 anos para mulheres e 35 para homens) com idade, sendo que o número mínimo de pontos será elevado anualmente a partir de janeiro de 2020 até atingir 100 pontos para mulheres e 105 pontos para homens;
- ii) tempo de contribuição mínimo atual acrescido de idade mínima, que se inicia em 2019 em 56 anos para mulheres e 61 anos para homens, sendo acrescidos 6 meses a cada ano até atingir 62 anos para mulheres e 65 anos para homens;
iii) para os que estão a 2 anos de cumprir o tempo mínimo de contribuição para a aposentadoria, é possível se aposentar usando o fator previdenciário, após pedágio de 50% sobre o tempo restante;
Tanto as regras de transição quanto as alíquotas podem enfrentar oposição no Congresso, principalmente, pelo forte lobby dos servidores nas bancadas da Câmara e se torna um exercício difícil a estimação da taxa de desidratação destes pontos.
Segundo estimativas do mercado a taxa de desidratação média é de próximo a 40%, ou seja, dos R$ 1,16 trilhão, é esperado algo próximo a R$ 800 bilhões, valor quase duas vezes superior à reforma proposta pelo Governo Temer que ao final de sua tramitação foi de R$ 480 bilhões. Neste sentido, o projeto atual é melhor quantitativamente frente ao anteriormente apresentado. Além disso, o projeto do governo anterior teria potência somente para reduzir em torno de 40% o ritmo de crescimento das despesas previdenciárias nos próximos 10 anos, incluindo nesta conta menores gastos com fraudes (R$ 20 bi/ano em média). Já o projeto atual apresentado pelo governo Bolsonaro desidratado conforme expectativa do mercado, e considerando reversão dos benefícios fraudulentos, tem potência para reduzir pouco mais que 50% do crescimento das despesas previdenciárias nos próximos 10 anos.
Outro ponto de destaque é que a nova proposta reduzirá os gastos previdenciários em relação ao PIB. A proposta do governo Temer, por sua vez, seria capaz de somente estabilizar tal relação. Este fenômeno é relevante uma vez que os gastos previdenciários brasileiros estão acima da média mundial e de seus pares. Portanto, o novo projeto da previdência tem como consequência aproximar o Brasil com a média internacional. Além dos aspectos fiscais, a reforma da previdência também possui impactos importantes em aspectos macroeconômicos. O primeiro e, possivelmente, mais óbvio diz respeito a queda da taxa de juros estrutural na economia brasileira. Isto porquê a reforma previdenciária, como detalhado acima, tem capacidade de melhorar sensivelmente a trajetória fiscal (especialmente em % do PIB) e, como consequência, melhorar o risco de crédito soberano. Como é sabido e amplamente documentado2, o prêmio de risco soberano é determinante para a taxa de juros estrutural de forma que tal redução também deve gerar redução correspondente na taxa de juros estrutural.
Além disso, a reforma da previdência irá restringir e dificultar as regras para a aposentadoria. Em outras palavras, uma porção da população que poderia se aposentar em determinada idade/condicionalidades não poderá mais fazê-lo de forma que permanecerão no mercado de trabalho. Assim como em qualquer outro mercado, a maior oferta (mão de obra) deverá limitar a alta de preço do produto (salário) para dada demanda. Neste sentido, além dos impactos fiscais e, consequentemente, para taxa de juros estrutural, a reforma da previdência também terá impacto importante no mercado de trabalho ao dificultar ganhos salariais devido a maior competição no médio prazo. A consequência de ganhos salariais menos vigorosos se traduz, entre outras coisas, em menor pressão inflacionária ao longo do tempo. *Parte deste texto já foi publicado no blog do Banco Daycoval, no link a seguir: http://blog.daycoval.com.br/palavra-do-economista/reforma-da-previdencia-possiveis-cenarios/. As alterações expressam somente as opiniões do autor e não a visão da instituição sobre a reforma da previdência.