Crises Financeiras: O Papel do Crédito na Economia de Mercado – Um Olhar Sobre 2008


Crédito é uma palavra derivada do latim credĭtum, que denota crença, confiança, empréstimo. Numa economia de mercado, o crédito possui também essas características. O texto pretende esclarecer notoriedade desse fator econômico, traçando paralelos sobre seus impactos, sobretudo, na crise de 2008.

De forma breve, ciclos econômicos podem ser definidos pela alternação entre curvas de ascensão (alta disponibilidade de crédito), seguidas de recessão (corte na oferta de crédito). Parafraseando Ray Dalio, fundador de uma das gestoras de hedge funds mais lucrativas do mundo, a economia nada mais é do que a soma das transações que a compõe (DALIO, 2015), ou seja, podemos resumir a economia como o conjunto de transações daqueles que querem comprar (tomadores de crédito) com as dos que querem vender (financiadores). Para o financiador, a promessa de que seu tomador irá honrar o pagamento da dívida com acréscimos de juros é um ativo em seu balanço; em contrapartida, a dívida torna-se um passivo para o tomador. Quando a dívida for quitada, esses ativos e passivos desaparecem.

 

Fonte: Blog Suno Research (2018)

 

O crédito é fundamental para o desenvolvimento da economia. Quando um tomador se dirige ao banco para acessar um financiamento, a execução de seus projetos (compra de máquinas, terrenos, quitação de dívidas, etc) é agilizada. Caso o banco não assumisse esse subsídio, o tomador teria de esperar um tempo considerável para que sua produtividade aumentasse, aumentasse sua renda, para aí sim, poder acumular o montante que busca no empréstimo. A tomada de crédito facilita essa ação, acelerando a geração de recurso. Existe uma tendência de que os gastos dos agentes econômicos sejam superiores às suas rendas, por exemplo, objetivando financiamento de um imóvel ou automóvel. O tomador decide colocar-se em exposição, assumindo uma dívida e um compromisso de quitá-la, visando agilizar a chegada do seu bem-estar.

O tomador, de alguma forma, irá gastar o dinheiro que pegou emprestado, gerando uma renda para um segundo agente econômico, que por sua vez, dará a um terceiro, assim sucessivamente. Numa situação em que a economia está aquecida, os agentes estão gastando mais, rendas crescem, bancos têm mais confiança para disponibilizar crédito, mais tomadores se encorajam para tomá-lo, demandas aumentam e preços sobem. Todavia, apesar dos benefícios citados, a inflação também traz malefícios: sobretudo, crescente desvalorização da moeda nacional e perda do poder de compra do consumidor. Neste momento, o Banco Central entra em ação com medidas monetárias para frear essa alavancada de preços, aumentando a taxa de juros (no caso do Brasil, a SELIC). Isso leva a um desencorajamento dos tomadores de empréstimos, desaquecendo a economia, diminuindo a demanda em relação à oferta.

Com a diminuição da disponibilidade de crédito no mercado, os consumidores passam a ter menos poder de compra e passam a gastar menos, levando à queda de renda geral. Então, o Banco Central, tencionando retomar o crescimento, diminui as taxas de juros, tornando o crédito mais acessível. Os agentes econômicos voltam a ser incentivados, consequentemente, consomem mais e aumentam a demanda; preços voltam a subir. Economia volta a aquecer e o ciclo se reinicia. Esse é o loop do ciclo de crédito numa economia.

A geração de crédito permite que os nossos gastos sejam maiores do que nossa produtividade. Para conseguir uma determinada quantia de dinheiro, não é preciso esperar minha produtividade aumentar a ponto de aumentar a renda; basta um financiamento e o montante esperado torna-se acessível. Porém, o pagamento desse financiamento contém juros. Para que o tomador consiga honrar sua dívida no futuro, precisará gastar menos do que sua renda (gerada pela produtividade) é capaz de pagar. Assim, a oferta de crédito no mercado vai oscilando em torno da produtividade, como representada na imagem abaixo. Observe que as pequenas oscilações cíclicas da disponibilidade de crédito (curva de curto prazo) seguem uma tendência geral (curva de longo prazo).  No nosso dia a dia, por exemplo, as notícias sobre políticas monetárias, aumento ou diminuição do PIB, geralmente, referem-se aos efeitos no curto prazo. Para encontrarmos a tendência a longo prazo, é aconselhável analisar os ciclos de curto prazo num período superior a 70 anos.

 

 

Os períodos de recessão econômica, ou economia desaquecida, são precedidos por um Boom Econômico; ativos em massa com preços crescentes, vasta disponibilidade de crédito para os agentes, até que, subitamente, a torneira fecha. Existem muitas discussões e debates sobre a previsibilidade desses momentos e como remediá-los. Há a necessidade de identificar quando estamos passando por um momento cíclico de recessão ou quando se adentra algo mais problemático: a depressão econômica. 

Na depressão, as políticas monetárias tomadas pelo Banco Central para reaquecer a economia (diminuição da taxa de juros e maior emissão de papel-moeda) não surtem mais efeitos e os tomadores não tem mais condições de honrarem suas dívidas. Uma vez que a promessa de pagamento de dívida é um ativo no balanço de alguém, caso a promessa não seja cumprida, o ativo simplesmente deixa de existir. Em efeito cascata, o mercado fica recheado de ativos podres.  A depressão financeira em 2008 teve diversos fatores, como a securitização de títulos complexos e de difícil rastreamento, negligência de agências avaliadoras de risco desses títulos no mercado e alavancagem descomedida. Todas essas pautas representam a imoderação na oferta de crédito, direta ou indiretamente.  Às vésperas da crise, títulos lastreados em hipotecas subprime eram o oásis do mercado financeiro. Créditos eram concedidos a rodo e averiguação de risco era baixíssima, isto é, negligência na análise da capacidade do tomador em honrar suas dívidas. Isso levou aos empréstimos ninja (no income, no job [and no] assets), onde os agentes conseguiam empréstimos sem ter renda, emprego ou ativos como garantia. Abaixo, segue um trecho do livro “Economia das Crises”, que ilustra bem o problema do crédito neste momento:

Ao invés de conceder empréstimos e de mantê-los em carteira de cobrança, os bancos e outras instituições financeiras emprestavam dinheiro sem examinar se os tomadores eram dignos de crédito e tratavam de repassar os empréstimos – hipotecas, financiamentos de automóveis, créditos educativos e até mesmo dívidas de cartões de crédito – para Wall Street, onde eles se transformavam em títulos de valor mobiliários cada vez mais complexos […]. (ROUBINI, Nouriel, 2010)

Dada a tomada de crédito generalizada pelos agentes, cada vez mais os financiadores procuravam tornar seus ativos mais líquidos, a fim de transferir o risco para outros agentes dispostos. Aqui, observamos o problema do risco-agente; agente principal não consegue passar seus ideais para os agentes responsáveis por cuidar de seus investimentos, ou seja, aqueles que executam diretamente a operação e tem acesso à visão macro. Os agentes operacionais se veem mais propensos à tomada de risco, uma vez que existe uma gratificação relevante para correr riscos extraordinários, em busca de ganhos extraordinários.

Em 15 de setembro de 2008, Lehman Brothers, um dos maiores e mais tradicionais bancos de investimentos dos EUA, anunciava falência. Isso foi a cereja do bolo para que a bolha implodisse, causando uma desconfiança generalizada nos mercados. Dada a amplitude da economia estadunidense, seus abalos foram, com certeza, sentidos nas mais remotas economias pelo mundo. Nesse momento, parte relevante do crédito circulando em Wall Street estava sendo financiado por economias que procuravam aplicar seus excedentes de poupanças, como Japão, Alemanha e China. Esses países apostavam na compra de títulos subprime, confortados pelas avaliações otimistas fornecidas por agências renomadas de avaliação de risco de títulos, como a Standard and Poor’s, Moody’s e Fitch Ratings. Essa negligência, intencional ou não, fez com que esses ativos podres flutuassem até outras economias. Financiadores pelo mundo todo colocaram suas crenças nos ativos com preços crescentes, imaginando que a tendência seguiria firme e duradoura. 

A depressão econômica acaba não se delimitando ao mercado financeiro. Na crise, o estancamento violento de crédito no mercado cria inadimplentes de modo exponencial. Financiadores não tem mais confiança para subsidiar novas dívidas, enquanto tomadores tentam desesperadamente liquidar seus ativos, numa tentativa de ganharem fôlego. Vendas em massa de ativos (aumento de oferta) sem compradores que acreditem no seu valor (diminuição da demanda) leva a uma queda descontrolada nos preços; prejuízo generalizado.

Muitos agentes econômicos passam a perder seus empregos e se veem sem saída para quitar suas dívidas, gerando agitações sociais. Tais contextos são os mais propensos para redesenhamento de políticas e governos, uma vez que a instabilidade econômica gera insatisfação popular e anseio por soluções imediatas. O desmantelo na oferta de crédito em 1929 foi um dos fatores que auxiliou a ascensão do partido nazista e o desenvolvimento da guerra mais sangrenta da história da humanidade. Em 2010, a Grécia recebeu empréstimos do FMI, visando desafogar suas contas pós crise de 2008. Os pacotes de austeridade foram severos, levando o país a penetrar ainda mais na instabilidade política. 

Pode-se inferir que a economia está, em sua maior parte, ligada ao controle de crédito; desde as reações de instituições financeiras, políticas monetárias e comportamentos dos agentes econômicos. O desenvolvimento de modelos financeiros que permitiram tomada de crédito favoreceu a geração de serviços e produtos, que muito dificilmente existiriam sem financiamentos. Grande parte do desenvolvimento sistêmico deve-se à criação de crédito. Todavia, o descontrole de crédito tem efeitos igualmente catastróficos. Os acordos de Basileia I e II, instaurados pré 2008, demonstram uma tentativa de controlar a expansão imoderada de crédito, todavia, não foram devidamente seguidos ou possuíam muitas brechas em suas ordens. Será que a normatização e fiscalização serão capazes de estancar os sangramentos que o crédito venha a causar na economia futuramente? 

 

FONTES:

DALIO, Ray. How the Economic Machine Works. Youtube, 17 mar. 2017. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=PHe0bXAIuk0&ab_channel=PrinciplesbyRayDalio>. Acesso em: 06 set. 20.

BRESSER-PEREIRA, Luiz CarLos et al. A crise financeira de 2008. Brazilian Journal of Political Economy, v. 29, n. 1, p. 133-149, 2009.

ROUBINI, Nouriel. MIHIM, Stephen. A economia das crises: um curso relâmpago sobre o futuro do sistema financeiro internacional. 2010.


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