Na esteira das medidas ‘não convencionais’ adotadas por Bancos Centrais ao redor do mundo após a crise de 2007-08, ganhou certa proeminência nas notas e reports das autoridades monetárias, bem como no debate econômico, o conceito de taxa de juros negativa. Alguns já sugerem que a noção de juros negativos desafia o senso comum de que a paciência e a poupança devem sempre ser celebradas como virtudes[1]. Contudo, é difícil deixar de lado a impressão de que uma situação deste tipo é, no mínimo, ‘não-natural’.
Recentemente, o economista Fernando Ulrich gravou, para seu canal no Youtube, dois vídeos que tratam do tema[2]. Nestes vídeos, Ulrich esclarece a ideia de taxa de juros negativa, alguns possíveis motivos para um investidor comprar um ativo que ‘ofereça’ uma taxa nesse patamar, e essencialmente, como a atual ocorrência de taxas de juros negativas parece ser um fenômeno artificial derivado das medidas não convencionais dos Bancos Centrais (lê-se: QE e demais instrumentos de expansão de liquidez).
Respaldado no mesmo raciocínio de Ulrich e suas fontes, vejo por bem estabelecer o conceito de taxa de juros negativas primeiro, especular sobre os motivos que poderiam levar alguém a aplicar seu dinheiro num ativo com taxa de juros negativa e, por fim, adicionar alguns comentários sobre problemas latentes na relação entre este fenômeno e a liberdade dos agentes econômicos.
QUAL O SIGNIFICADO DAS TAXAS DE JUROS NEGATIVAS?
Primeiramente, é importante entender que, embora raríssimos casos de taxas negativas tenham ocorrido de maneira implícita na negociação de certos ativos no passado[3], a banalização, por assim dizer, deste fenômeno tem estreita ligação com a ação dos Bancos Centrais ao redor do mundo, que visando contribuir para reanimar a economia, empurraram os juros para além do que muitos pensaram ser a lower bound – isto é, para um patamar abaixo de zero.
Mas o que significa o estabelecimento de taxas de juros negativas pelo Banco Central? Basicamente, significa que o Banco Central está cobrando uma espécie de tarifa sobre as reservas bancárias que alguns bancos (os Primary Dealers[4]) mantêm em suas contas junto à autoridade monetária. Isso não significa que os bancos repassam esses juros negativos para seus correntistas, embora isto ocorra em situações específicas. No final das contas, repassar ou não estes custos é uma decisão dos bancos, como tem enfatizado executivos dos Bancos Centrais quando confrontados sobre o tema[5]. Isto, é claro, não exime a autoridade monetária da responsabilidade pelo estabelecimento das taxas neste patamar, como veremos a seguir.
POR QUE ALGUÉM APLICARIA SEU DINHEIRO NUM ATIVO COM TAXAS DE JURO NEGATIVAS?
Seguindo Fernando Ulrich, elenco três motivos centrais que podem levar um investidor a aplicar seu capital num título que renda juros negativos:
(1) Segurança emanada pela dívida soberana[6] (relevante essencialmente em tempos de crise ou iminente choque recessivo na economia). Ou seja, basicamente o comprador de uma dívida com estas características estaria pagando pela proteção da maior parte de seu capital;
(2) Os agentes podem estar esperando deflação, de modo que, mesmo com juros nominais negativos, obteriam retornos reais positivos. O próprio Ulrich declara que considera essa ideia pouco plausível.
(3) Mesmo que um investidor compre um título com taxa de juros negativa, ele não necessariamente ficará com esta dívida até o seu vencimento, podendo se desfazer dela por um preço Pn, com n sendo o período da venda, no mercado secundário. Ocorre que, se o título estiver sendo muito demandado, a taxa de juros implícita estará ainda mais negativa do que era no momento da compra do título pelo primeiro investidor. Assim este último pode revender a dívida por um preço maior do que comprou e lucrar com isso (i.e., motivação especulativa).
TAXAS DE JUROS NEGATIVOS E LIBERDADE ECONÔMICA
Como dito anteriormente, é fato que as ações dos bancos centrais têm influência crucial na ocorrência deste fenômeno. Primeiramente, não é difícil reparar que, uma vez que o preço dos títulos de dívida define a taxa de juros implícita em negociações no mercado secundário, uma demanda massiva por esses títulos, fruto de injeções de liquidez por parte dos bancos centrais ao redor do mundo no período pós-crise de 2008, poderia fazer (e, em muitos casos, fez) com que o preço destes títulos chegasse a patamares tão elevados que superem seu valor de face, isto é, acarretar taxas de juros implícitas negativas nestas dívidas.
Além disso, não exige grande esforço da autoridade monetária a manipulação da chamada Deposit Facility, a taxa que é paga pelos bancos para manter suas reservas em excesso[7] junto ao Banco Central, e atua como uma espécie de limite inferior para a taxa básica de juros[8]. Uma rápida visita à página principal do Banco Central Europeu, por exemplo, nos permite notar que esta taxa está atualmente em -0,4% ao ano, o que significa que os bancos pagam ao BCE se estiverem com reservas em excesso ao final do dia, o que tende a estimular os empréstimos e (espera-se) ajuda a reanimar a economia através do crédito.
Até aqui a coisa pode parecer apenas uma medida não convencional de Política Monetária, com aparentes boas intenções (dar fôlego a economias virtualmente estagnadas) e que precisa que o tempo teste sua funcionalidade. E, grosso modo, é de fato isso. Contudo, o estímulo artificial da economia por meio das taxas de juros negativas pode embutir alguns dilemas no que tange à extensão do poder da autoridade monetária e a liberdade dos agentes numa economia de mercado.
Por um lado, uma eventual extensão das taxas de juros negativas para os empréstimos bancários criaria a curiosa situação na qual os clientes poderiam captar recursos junto à uma instituição financeira e, ao final de cada período de capitalização (i.e., o período acordado para incidência de juros sobre o montante principal), receber, ao invés de pagar, juros desta instituição. Isso criaria um incentivo à tomada de empréstimos pelos indivíduos mesmo sem intenção alguma de investir ou consumir, bem como à manutenção de recursos em forma de papel moeda[9], com certa tendência ao enfraquecimento do multiplicador bancário[10], e consequente influência sobre o crescimento da base monetária que poderia contrariar as intenções da autoridade monetária.
Para combater a segunda consequência –concentração de recursos em papel moeda -, alguns têm proposto medidas que vão desde a introdução de uma moeda digital do Banco Central, que permitiria cobrança de juros negativos diretamente neste ativo através de alguns mecanismos de conversão, até a taxação direta da posse de papel moeda[11].
Por outro lado, é também digno de nota que uma eventual situação de insatisfação dos clientes, essencialmente no varejo, derivada de uma súbita cobrança de taxas de juros negativas sobre seus depósitos, poderia causar grandes pressões sobre a liquidez do sistema bancária, acentuando a fragilidade do sistema de reservas fracionárias e, por vezes, exigindo ‘manobras jurídicas’ para a restrição da restituição de recursos aos seus donos[12].
Isto posto, é realmente difícil imaginar como a restrição aos saques dos recursos depositados junto às instituições financeiras e/ou a imposição de taxas não previamente acordadas sobre a posse de papel moeda não violariam a liberdade dos indivíduos e empresas, essencialmente quando não há aparato legal que fundamente a primeira situação e quando os agentes não têm poder de escolha sobre a moeda com a qual transacionam[13].
Adicionalmente, é estranho pensar como sobreviveriam, por exemplo, companhias de seguros e fundos de pensão num ambiente com taxa de juros negativas. É claro que alguns podem afirmar que isso estaria incluso no pacote de riscos dos negócios. Mas sendo as taxas de juros negativas essencialmente um instrumento de política dos Bancos Centrais, isso levanta (pelo menos) duas questões essenciais:
- Sendo os juros negativos potencialmente prejudiciais a estes negócios, podendo até mesmo levar algumas firmas à bancarrota, o Banco Central parece ganhar o poder de escolher, através de sua influência sobre o sistema bancário, os ramos que prosperam e os que tendem a perecer;
- Ainda baseado no argumento de ‘estímulo à economia’, não seriam as atividades dos fundos de pensão ou das seguradoras cruciais para uma economia saudável[14]? Como argumentar que há um resultado positivo quando se lança mão de medidas com potencial tão destrutivo para a performance destas operações?
Sem mais delongas, e dados estes exemplos, faz-se crucial refletir a respeito de quanto poder a possibilidade de imposição de taxas de juros negativas dá aos Bancos Centrais ao redor do mundo ou, ainda mais relevante, quanto poder teria que ser concedido às autoridades monetárias para que os efeitos das taxas em terreno negativo fossem na direção desejada. A questão que parece surgir, finalmente, é: quão longe estamos dispostos a elevar a potência da Política Monetária, mesmo que em detrimento da liberdade dos agentes na economia?
Referências:
[1] Discurso de Peter Praet, Membro da Mesa Executiva do BCE, intitulado Communicating the complexity of unconventional monetary policy in MEU, na 2017 ECB Central Bank Communications Conference, Frankfurt am Main, 15 de novembro de 2017.
[2] 1º https://www.youtube.com/watch?v=IlG-poxnwCs
2º https://www.youtube.com/watch?v=Ihtou9fya0k
[3] Ver: https://www.reuters.com/article/global-bonds-negative-coupons-idUSL8N16B3T8
[4] Ver: https://www.investopedia.com/terms/p/primarydealer.asp
[5] Ver: https://www.youtube.com/watch?v=itNc55_7ZG4
[6] Assumindo que o ativo em questão seja um título de dívida do governo.
[7] Ver: https://www.investopedia.com/terms/e/excess_reserves.asp
[8] Ver: https://www.ecb.europa.eu/mopo/decisions/html/index.en.html
[9] É importante notar que a existência do próprio dinheiro físico como ativo na economia torna impossível que o banco central empurre a taxa de juros para um terreno muito negativo. Num cenário onde as taxas são ligeiramente negativas, a inconveniência em realizar movimentação em dinheiro vivo tende a fazer com que os agentes ainda detenham fundos na forma de depósitos bancários. Uma redução drástica dos juros, contudo, aumentaria o custo de oportunidade desses depósitos, tornando atrativa a migração para dinheiro em espécie, um ativo com juro nominal de zero porcento.
[10] Ver: https://www.investopedia.com/terms/d/deposit_multiplier.asp
[11] Ver: https://www.nber.org/papers/w15118.pdf
[12] Ver, como exemplo também citado por Ulrich em seu video: https://www.zerohedge.com/news/2015-04-25/war-cash-migrates-switzerland
[13] Ver: http://www.communitycurrencieslaw.org/currency-laws/#fn-32-1
[14] Fundos de pensão atuam essencialmente no fornecimento de serviços de previdência complementar, ao passo que as seguradoras oferecem desde planos de saúde até seguros contra perdas financeiras. Parece claro, portanto, o prejuízo que poderia decorrer de uma crise em qualquer um destes setores.